terça-feira, agosto 17, 2010

Recordações: o “canto em baixo” da Rua do Carvão.


O "canto em baixo" da Rua do Carvão hoje em dia.

Em especial para o “Zezinho” e para o “Canhoto” - ambos emigrados vai para quarenta anos, e com quem via “Face book” retomei contacto muito recentemente - aqui vai o fruto do autêntico “brain storming” que as suas mensagens causaram. Este texto, à laia de conto, servirá também, que mais não seja, para ajudar a recordar a zona onde crescemos e muitas vezes brincamos: um bom reinício de conversa.

Chamavam-lhe “rua dos milionários”. A alcunha derivava do facto de a partir da década cinquenta do século XX terem lá sido construídas umas quantas novas moradias, meia dúzia delas de traça elegante, com fachadas a fazerem adivinhar comodidades acima da média. O seu verdadeiro nome era porém, e ainda o é: Rua do Carvão, bem mais humilde portanto. Tal como modestos eram também – ainda hoje o são – a esmagadora maioria dos que lá residiam.
Na realidade, tratava-se, tal como muitas outras por ali em Santa Clara, de mais uma artéria estreita, paredes meias com terrenos com usos agro-industriais, traçada sem grande auxílio da régua e do esquadro, não pavimentada, em cuja zona de maior largueza - um irregular largo na sua extrema sul - outrora se localizara a fonte pública que abastecia muitos dos moradores das redondezas. Com o decorrer do tempo, e já desde há muito, o líquido vital deixara de correr no antigo chafariz do “canto do carvão”, mas não era isso porém o que impedia de à sua volta continuarem a verificar-se regulares ajuntamentos de novos e velhos, uns brincando, outros cavaqueando, uns e outros, muitas vezes, aproveitando como encosto, ou assento, a laje de pedra se mi circular onde antes enquanto a água jorrava para o seu interior se apoiavam os recipientes para encher até quase transbordar.
Foi junto daquela peanha, emoldurada por um alto balcão que ainda lá está encimando a entrada de uma farta quinta – que então se estendia até mais de meio da rua por detrás dos quintais das casas novas –, quando integrava um grupo de rapazes que ali jogava ao berlinde, que o mestre José Correia – o “velho Saldanha”, grande futebolista da década de trinta, e pai do “Saldanha” que alguns de nós ainda vimos jogar como aguerrido lateral do CDSC nos anos 50/60 –, humilde operário, homem reservado, já então carregando o peso de longos anos de uma vida dura, surpreendeu-me com uma exclamação que, quase meio século depois, ainda recordo.
Naquele dia, quando chegava ao fim mais uma manhã de verão, e o aroma agridoce que durante a laboração da Fábrica do Açúcar impregnava o ar em Santa Clara reforçava a lembrança de que se aproximava a hora do almoço, uma pequena manada, a caminho do matadouro, obrigou a interrupção da brincadeira. Entre os bovinos um enorme touro causava merecida apreensão. Isto, mesmo com os movimentos tolhidos pela corrente, que partindo de uma das patas, após passar por uma argola presa ao focinho, estava firmemente segura pelo tratador. Foi tal o desassossego que até o circunspecto “velhote”, sempre recolhido no seu habitual silêncio, transferira para os animais a atenção até ali dedicada a observar a brincadeira dos catraios. E estes, receosos, acercaram-se do ancião, nele julgando encontrar a segurança que lhes permitia observar, de perto, tão imponente animal.
Quando a manada dobrou a esquina os rapazes como que recarregaram energias, com um deles, aliviado, exclamando em voz alta:
- Livra, que besta de touro!
Foi então que “Ti Saldanha”, interrompendo o seu habitual silêncio, asseverou:
- Pois é. Este menino está na escola mas ainda não aprendeu que um animal ou é besta, ou é touro, ambas as coisas, ao mesmo tempo, é que não pode ser!
E mais não disse. Foi suficiente. Marcou.

A.O. 17/08/10; “Cá à minha moda" (revisto e ligeiramente acrescentado)