terça-feira, agosto 31, 2010

Medeiros Cabral: fim precoce de uma vida prenhe de utopia e ânsia de liberdade





Sugestão de ocupação de um dos espaços propostos no
âmbito da actividade "PARTICIPAR / INQUIETAÇÃO" por
Pedro Maiato e Miguel Abrantes
Estivesse ele ainda entre nós, e de hoje a oito dias José Manuel de Medeiros Cabral completaria cinquenta e cinco anos de idade. Assim não será, infelizmente, pois no dia 20 do passado mês de Dezembro decorreram exactamente 30 anos sobre a data do seu falecimento.

Menino diferente, sossegado, habitualmente apartado dos outros da mesma idade, muito cedo o Zé Manuel Cabral se transformou no jovem inteligente, estudioso, socialmente inquietado e interventivo, que enriquecendo-se e consolidando-se como tal também nos movimentos de intervenção social que em finais da década de sessenta orbitavam à volta da Igreja de Santa Clara, começou logo aí a revelar a consciência de classe que o marcou, e a sua obra retrata.
Ainda criança, quando na falsa do nº 126 da 1ª Rua de Santa Clara armava aprimorados altares, palcos e outras artísticas instalações, Zé Manuel já deixava perceber a agitação e criatividade contidas no seu espírito, só aparentemente plácido e impassível. Criatividade e sensibilidade artística que ainda como adolescente o conduz a uma fugaz incursão pela fotografia, para pouco depois, decorriam os primeiros anos da década de setenta – e ainda antes do 25 Abril –, participando na exposição colectiva do “Externato D. Infante”, começar a partilhar com o publico a sua revolucionária obra, em busca do original e não necessariamente do bonito, da qual constavam, depois de reciclados e transformados em peças de arte, objectos recolhidos na orla marítima de Santa Clara, em especial no Calhau da Areia.
Foi também em Santa Clara, no atelier que manteve onde antes fora a “tenda” de “Mestre Virgínio Barbeiro” – oh, muito longe nos levaria falar do mestre Virgínio e da sua tenda… – que Zé Manuel Cabral produziu aquela que sem risco de errar se pode afirmar ser a sua obra prima: o tríptico “A História”, que na tela dedicada ao capitalismo, onde representou o sentir e observar da actualidade de então, é por demais notória a presença de Santa Clara, ali ocupando quase por inteiro um cenário onde, em grande plano, como que flutuando sentado em pomposa cadeira, com fato negro e gravata cor de sangue, “o poder” – nisso o quadro mantém impressionante actualidade – manipula com destreza as suas marionetas.
No 1º de Maio de 1975, quando ainda nem completara vinte anos, Zé Manuel Cabral espevita Ponta Delgada com a exposição que instala em plena Praça Gonçalo Velho, uma mostra em as suas obras, em vez colocadas à venda, foram sim destinadas a trocas por artigos vários, incluindo frutas, legumes e tubérculos.
De 1977, ano em que ingressou na Escola Superior de Belas Artes do Porto, até finais de 1979, quando na sequência da intervenção cirúrgica com que esperava normalizar a sua vida esbarra serenamente com a morte, decorre o período mais rico e produtivo, contudo dramaticamente curto, daquele que o meio artístico haveria de consagrar como MEDEIROS CABRAL.

Santa Clara não esqueceu o filho dedicado, artista que a incorporou numa das peças mais representativas da sua obra. Mas a mais grata e justa homenagem seria a criação na localidade de um lugar onde o seu trabalho pudesse ser melhor conhecido e mais divulgado, o que bem podia acontecer na zona do “Castelinho”, integrado no plano de requalificação daquele imóvel e do seu espaço envolvente, completando-se assim a feliz transformação de que a área das "Cancelas da Doca" e seus arredores tem vindo a beneficiar.
A.O. 31/08/10; “Cá à minha moda" (revisto e ligeiramente acrescentado)

terça-feira, agosto 17, 2010

Recordações: o “canto em baixo” da Rua do Carvão.


O "canto em baixo" da Rua do Carvão hoje em dia.

Em especial para o “Zezinho” e para o “Canhoto” - ambos emigrados vai para quarenta anos, e com quem via “Face book” retomei contacto muito recentemente - aqui vai o fruto do autêntico “brain storming” que as suas mensagens causaram. Este texto, à laia de conto, servirá também, que mais não seja, para ajudar a recordar a zona onde crescemos e muitas vezes brincamos: um bom reinício de conversa.

Chamavam-lhe “rua dos milionários”. A alcunha derivava do facto de a partir da década cinquenta do século XX terem lá sido construídas umas quantas novas moradias, meia dúzia delas de traça elegante, com fachadas a fazerem adivinhar comodidades acima da média. O seu verdadeiro nome era porém, e ainda o é: Rua do Carvão, bem mais humilde portanto. Tal como modestos eram também – ainda hoje o são – a esmagadora maioria dos que lá residiam.
Na realidade, tratava-se, tal como muitas outras por ali em Santa Clara, de mais uma artéria estreita, paredes meias com terrenos com usos agro-industriais, traçada sem grande auxílio da régua e do esquadro, não pavimentada, em cuja zona de maior largueza - um irregular largo na sua extrema sul - outrora se localizara a fonte pública que abastecia muitos dos moradores das redondezas. Com o decorrer do tempo, e já desde há muito, o líquido vital deixara de correr no antigo chafariz do “canto do carvão”, mas não era isso porém o que impedia de à sua volta continuarem a verificar-se regulares ajuntamentos de novos e velhos, uns brincando, outros cavaqueando, uns e outros, muitas vezes, aproveitando como encosto, ou assento, a laje de pedra se mi circular onde antes enquanto a água jorrava para o seu interior se apoiavam os recipientes para encher até quase transbordar.
Foi junto daquela peanha, emoldurada por um alto balcão que ainda lá está encimando a entrada de uma farta quinta – que então se estendia até mais de meio da rua por detrás dos quintais das casas novas –, quando integrava um grupo de rapazes que ali jogava ao berlinde, que o mestre José Correia – o “velho Saldanha”, grande futebolista da década de trinta, e pai do “Saldanha” que alguns de nós ainda vimos jogar como aguerrido lateral do CDSC nos anos 50/60 –, humilde operário, homem reservado, já então carregando o peso de longos anos de uma vida dura, surpreendeu-me com uma exclamação que, quase meio século depois, ainda recordo.
Naquele dia, quando chegava ao fim mais uma manhã de verão, e o aroma agridoce que durante a laboração da Fábrica do Açúcar impregnava o ar em Santa Clara reforçava a lembrança de que se aproximava a hora do almoço, uma pequena manada, a caminho do matadouro, obrigou a interrupção da brincadeira. Entre os bovinos um enorme touro causava merecida apreensão. Isto, mesmo com os movimentos tolhidos pela corrente, que partindo de uma das patas, após passar por uma argola presa ao focinho, estava firmemente segura pelo tratador. Foi tal o desassossego que até o circunspecto “velhote”, sempre recolhido no seu habitual silêncio, transferira para os animais a atenção até ali dedicada a observar a brincadeira dos catraios. E estes, receosos, acercaram-se do ancião, nele julgando encontrar a segurança que lhes permitia observar, de perto, tão imponente animal.
Quando a manada dobrou a esquina os rapazes como que recarregaram energias, com um deles, aliviado, exclamando em voz alta:
- Livra, que besta de touro!
Foi então que “Ti Saldanha”, interrompendo o seu habitual silêncio, asseverou:
- Pois é. Este menino está na escola mas ainda não aprendeu que um animal ou é besta, ou é touro, ambas as coisas, ao mesmo tempo, é que não pode ser!
E mais não disse. Foi suficiente. Marcou.

A.O. 17/08/10; “Cá à minha moda" (revisto e ligeiramente acrescentado)

terça-feira, agosto 03, 2010

Jorge Nascimento Cabral: em sua memória

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Foi tal o atordoamento provocado pela súbita e brutal notícia, que, passados que estão já quase 15 dias, ainda custa acreditar na enorme perda que o “bom combate” sofreu com a partida, sem regresso, de um dos seus mais francos combatentes.
Para além da família, cujo atrevimento em imaginar o quanto nesta hora continuam abalados é dispensável, Jorge Nascimento Cabral origina um avultado rol de órfãos: são aqueles que deixaram de com ele privar, falar, de o poder ler ou ouvir, exercícios mais ou menos solitários, mas sempre recompensados pela lucidez, frontalidade e desassombro do interlocutor, que não pestanejava para dizer ou escrever o que pensava, independentemente do que isso pudesse desagradar a quem quer que fosse. E fazia-o sem confundir amizades pessoais com disputas políticas, ou duras pugnas em defesa de causas!
Do muito que até hoje já se disse e escreveu, permitam-me destacar o comedido elogio fúnebre de Carlos Melo Bento – aqui já infimamente citado – e a feliz frase de Paulo Martinho, enlevando um espírito que “nunca esteve em paz sujeito”. Acrescentar é cada vez mais difícil, mas há algo que não pode deixar de ser referido: Jorge Nascimento Cabral foi MUITO MAIS do que um grande autonomista, porque é necessário ser-se muito mais do que um GRANDE AUTONOMISTA para levar à Assembleia Legislativa dos Açores, tal como ele o fez, a questão da INDEPENDÊNIA DOS AÇORES.
Conheci Jorge Nascimento Cabral em meados da década de oitenta, vivia eu os primeiros anos da minha própria independência, num tempo em que se ia para o Nordeste por uma tão bonita quanto bucólica estrada, ainda toda calcetada, via que a partir da Salga, ziguezagueando de forma cada vez mais pronunciada, procurava as zonas mais estreitas das ribeiras para as transpor, com pontes construídas usando ainda técnicas e métodos herdados aos romanos. Era uma saudosa e agradável viagem, que não se fazia em menos de hora e meia, ou muito mais, caso houvesse paragem pelo caminho para uma refeição, em regra no Porto Formoso. Se a viagem era assim, o Nordeste ainda era melhor: as modernices, e o dito progresso, ainda o não tinham contaminado. Na altura era até possível alugar pequenas casas que havia na margem da Ribeira do Guilherme, junto à foz – na “boca da ribeira” como é hábito ali dizer-se. Na mesma “boca da ribeira” onde à esquerda da ponte de madeira que conduzia até à zona balnear, num acolhedor acampamento – apesar de ter casa de família por perto –, Jorge Nascimento Cabral passou durante anos parte das suas férias. Naquele acampamento, por vezes, qual urbana sala de visitas, havia noites de grande actividade social. De uma delas recordo o animado remate de um qualquer recente debate parlamentar, com os dois tribunos presentes, não obstante estarem em férias, fazendo uso dos seus singulares dotes, com humor e ironia mordaz funcionando em ritmo de pingue-pongue, e rasgadas gargalhadas de permeio. Dos dois jovens políticos de então, ambos desde sempre militando em trincheiras diferentes, um, infelizmente, já não está entre nós, e o outro, há mais de uma década, preside ao Governo dos Açores.
Pois é digníssimo Jorge, ainda não me refiz da desagradável surpresa que nos proporcionaste. Para a atenuar, e compensar a repentina ausência, tenho lido e relido o prefácio com que me brindaste para prelúdio de um livro que por razões várias continua em maqueta, sem ir ao prelo. Ajuda, mas recorda-me que também tenho entre mãos um dos teus órfãos: um prefácio que já não tem o amparo do seu autor. Nada que não se resolva, mas que contigo por perto seria mais fácil.
Descansa em paz amigo.

PS – Faleceu hoje (02Agosto2010) Mário Bettencourt Resendes: também açoriano, também um insigne jornalista, este sim, só e apenas um autonomista.
Terminada uma longa e brava luta, que agora também descanse em paz.

A.O. 03/08/10; “Cá à minha moda" (revisto e acrescentado)