terça-feira, outubro 26, 2010

Revisitar a ponta Delgada em três leituras


Hoje, coberta que está pelas toneladas de entulho que ao longo dos anos sobre si foram depositadas, da ponta Delgada – que depois se passou a chamar ponta de Santa Clara e em Santa Clara é popularmente conhecida como “ponta da sardinha” – pouco mais se vislumbra do que a sua estreita estrema final. Mas nem sempre assim foi!
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Assim não seria em 1584, quando Luís Teixeira, distinto geógrafo e cartógrafo – pai e avô de outros não menos distintos mestres da arte de fazer cartas de marear –, ao serviço de Filipe II de Espanha (I de Portugal) percorreu os Açores anotando com minúcia os dados que mais tarde lhe permitiram levar a cabo uma das suas mais importantes obras: a colecção de mapas dos Açores que se encontra na Biblioteca Nacional de Florença. Nesta colectânea, na carta que engloba todo o arquipélago – ao contrário do que acontece com as outras ilhas o mapa que trata isoladamente a Ilha de São Miguel não consta do precioso conjunto –, entre as muitas referências topográficas e toponímicas, lá estão no centro da ilha, de Nascente para Poente, em castelhano: “Ciudad”, “P. Delgada” e “De la Relva”, com a ponta que deu nome à maior cidade dos Açores entre uma e outra, e todas devidamente marcadas no exacto local onde ainda hoje as podemos encontrar (1).
É ainda desta época – finais da década de 80 do século XVI – a célebre frase de Gaspar Frutuoso: “Esta cidade de Ponta Delgada é assim chamada por estar situada junto de uma ponta de pedra de biscouto, delgada e não grossa como as outras da ilha, quase rasa com o mar, que depois por se edificar mais junto dela uma ermida de Santa Clara, se chamou ponta de Santa Clara (…)”, e também, quiçá fruto de alguma partilha de informação entre dois eruditos súbditos do poderoso monarca, o detalhado “retrato escrito” da costa de Santa Clara que o cronista mor nos legou: “Além, pouco espaço da fortaleza para Loeste, está uma ponta que se chama Ponta dos Algares (…) e logo está uma pequena baía de areia, defronte das casas do generoso e em tudo grandioso Francisco Arruda da Costa (…) e com grande custo seu cercada de muro e cubelos, com sua porta para o mar, tudo muito defensável, e pegado com a porta, chamada de Santa Clara, por estar ali a igreja paroquial desta Santa, onde se acaba a principal costa da cidade (…)(2). Foi como se Gaspar Frutuoso, a menos de uma década da sua última e definitiva viagem, quisesse deixar descrito o cenário para uma das muitas cenas da História dos Açores de que Santa Clara foi palco.
De facto, a 17 Outubro de 1597, com a ponta Delgada como testemunha e adereço, Gonçalo Vaz Coutinho, Governador da Ilha, depois de ter atravessado a cidade num apressado galope iniciado em Rosto de Cão, deteve-se próximo da ermida de Santa Clara confirmando a preocupação que lhe haviam transmitido à saída da missa em que naquela manhã participara na ermida da Madalena: as velas que se avistavam a Poente eram mesmo uma Nau da Índia, embarcação que corria risco de ser assaltada pela enorme frota inglesa então dominando quase toda a costa Sul da ilha, depois de já a ter tentado tomar e desembarcando em Vila Franca. E foi no calhau de Santa Clara que o Governador sentiu o primeiro momento de alegria daquele dia, pois o jovem Apolinário Serrão, atendendo à aflição do governante, deitou-se à água destemidamente e nadando com vigor até desaparecer entre ondas mar adentro, conseguiu chegar à embarcação para transmitir a mensagem do governador aconselhando que a mesma encalhasse nos baixios daquela costa já que desta forma podia ser descarregada evitando o saque a que estava sujeita. Assim aconteceu, e depois de recolhido o precioso carregamento a nau foi incendiada para impedir que com ela aumentassem a frota inimiga (3).
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Por essa e outras pergunta-se: Será que a ponta Delgada não merecia libertar-se totalmente dos entulhos que a sufocam, e, bem mais visível, voltar a readquirir a merecida dignidade de “madrinha” de Ponta Delgada?

(1) – Campos, Viriato – Sobre o descobrimento e povoamento dos Açores, Europress, págs. 106 a 117.
(2)
Frutuoso, Gaspar – Livro IV das Saudades da Terra, ICPD 1998, págs. 172 a 178.
(3) – Arquivo dos Açores, Volume X, págs. 134 a 141.


A.O. 26/10/10; “Cá à minha moda" (revisto e ligeiramente acrescentado)

terça-feira, outubro 12, 2010

Um marinheiro poeta a vogar entre os Rosais e Santa Clara






Vital Silveira Cardoso, ou “Mestre Vital” como é conhecido em Santa Clara e entre pares no âmbito dos misteres a que caprichosa e competentemente se dedica ou dedicou, é senhor de uma vida preenchida de forma tão fértil que o difícil é concentrarmo-nos na sua faceta de poeta popular agora revelada em “Versejando”, livro de poemas apresentado no passado sábado, dia 09 Outubro de 2010, por ocasião da cerimónia de encerramento das comemorações do 5º aniversário da Freguesia de Santa Clara.
Radicado em Santa Clara desde meados da década de 60 do século XX, quando ainda, recém-casado, acabara de iniciar uma fulgurante carreira como marinheiro – tornando-se aos 27 anos no mais jovem Contramestre da Marinha Mercante –, Santa Clara rapidamente o adoptou, e foi lá que nasceram e cresceram os seus filhos, e aonde à sua volta, entre familiares e amigos, juntou mais uns quantos patrícios. Era, mais uma vez, Santa Clara a cumprir o seu destino. E não podia ser de outra maneira: não fosse a localidade, desde os seus primórdios, terra de embarcadiços, local de partidas e chegadas, chão que ensopou muitas lágrimas em horas de abalada, mas também terreno sempre propício a acolher, acarinhar e integrar quem vindo de outras paragens o escolheu para se fixar. Fora assim com aqueles que a meados do século XV, vindos de Vila Franca, por lá assentaram arraiais dando origem a Ponta Delgada. Assim foi também, a partir de meados do século XIX, aquando da construção do porto artificial de Ponta Delgada. Assim continuou sendo nos primeiros anos do século XX, com o surto de industrialização que a cidade conheceu e Santa Clara acolheu. Assim continua e continuará a ser, pois está na sua génese: a grande diferença é que enquanto até ao século XIX, com Vila Franca como centro e origem, foram Água Retorta, a Nascente, e a Bretanha, a Poente, o limite natural da imigração, a partir do século XX este âmbito, alargando-se, passou primeiro também às outras ilhas dos Açores, para depois se estender ao resto do mundo.
Mas regressemos a “Mestre Vital”: o músico, o marinheiro, o poeta, que, não obstante o seu carácter discreto e um tanto ou quanto distante, aqui e ali, sempre foi possível ouvir arrancando deliciosos trinados ao seu bandolim ou contando histórias sobre as muitas viagens e quase outras tantas aventuras que o navegar entre as ilhas lhe proporcionou. Excepcional mesmo, quase um privilégio, era – e é – escutá-lo a recitar a sua própria poesia, à qual uma pausada e muito musical entoação, associada ao sotaque jorgense que nunca perdeu, acrescentam especial singularidade.
Nostálgica e sofrida na abordagem dos temas mais íntimos, a poesia do “Mestre Vital” mostra-se atenta, perspicaz, e até interventora quando trata questões de ordem social, não se furtando à crítica das injustiças mais iminentes. Poesia a que também não lhe falta uma vertente agradavelmente irónica e divertida, sobretudo no retratar os usos e costumes açorianos das diversas ilhas.Em “Versejando” só fica apresentada uma ínfima parte do interessante espólio poético de Vital Silveira Cardoso. Poemas que agora, depois de escritos e editados, mesmo perdendo algum do encanto que a oralidade – sobretudo a do autor – lhes confere, vão com certeza poder chegar a um maior número de pessoas, fazendo justiça a uma poesia peculiar não merecia continuar ignorada, e a um genuíno e sensível poeta popular, até aqui, praticamente anónimo.


A.O. 12/10/10; “Cá à minha moda" (revisto e ligeiramente acrescentado)