terça-feira, agosto 03, 2010

Jorge Nascimento Cabral: em sua memória

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Foi tal o atordoamento provocado pela súbita e brutal notícia, que, passados que estão já quase 15 dias, ainda custa acreditar na enorme perda que o “bom combate” sofreu com a partida, sem regresso, de um dos seus mais francos combatentes.
Para além da família, cujo atrevimento em imaginar o quanto nesta hora continuam abalados é dispensável, Jorge Nascimento Cabral origina um avultado rol de órfãos: são aqueles que deixaram de com ele privar, falar, de o poder ler ou ouvir, exercícios mais ou menos solitários, mas sempre recompensados pela lucidez, frontalidade e desassombro do interlocutor, que não pestanejava para dizer ou escrever o que pensava, independentemente do que isso pudesse desagradar a quem quer que fosse. E fazia-o sem confundir amizades pessoais com disputas políticas, ou duras pugnas em defesa de causas!
Do muito que até hoje já se disse e escreveu, permitam-me destacar o comedido elogio fúnebre de Carlos Melo Bento – aqui já infimamente citado – e a feliz frase de Paulo Martinho, enlevando um espírito que “nunca esteve em paz sujeito”. Acrescentar é cada vez mais difícil, mas há algo que não pode deixar de ser referido: Jorge Nascimento Cabral foi MUITO MAIS do que um grande autonomista, porque é necessário ser-se muito mais do que um GRANDE AUTONOMISTA para levar à Assembleia Legislativa dos Açores, tal como ele o fez, a questão da INDEPENDÊNIA DOS AÇORES.
Conheci Jorge Nascimento Cabral em meados da década de oitenta, vivia eu os primeiros anos da minha própria independência, num tempo em que se ia para o Nordeste por uma tão bonita quanto bucólica estrada, ainda toda calcetada, via que a partir da Salga, ziguezagueando de forma cada vez mais pronunciada, procurava as zonas mais estreitas das ribeiras para as transpor, com pontes construídas usando ainda técnicas e métodos herdados aos romanos. Era uma saudosa e agradável viagem, que não se fazia em menos de hora e meia, ou muito mais, caso houvesse paragem pelo caminho para uma refeição, em regra no Porto Formoso. Se a viagem era assim, o Nordeste ainda era melhor: as modernices, e o dito progresso, ainda o não tinham contaminado. Na altura era até possível alugar pequenas casas que havia na margem da Ribeira do Guilherme, junto à foz – na “boca da ribeira” como é hábito ali dizer-se. Na mesma “boca da ribeira” onde à esquerda da ponte de madeira que conduzia até à zona balnear, num acolhedor acampamento – apesar de ter casa de família por perto –, Jorge Nascimento Cabral passou durante anos parte das suas férias. Naquele acampamento, por vezes, qual urbana sala de visitas, havia noites de grande actividade social. De uma delas recordo o animado remate de um qualquer recente debate parlamentar, com os dois tribunos presentes, não obstante estarem em férias, fazendo uso dos seus singulares dotes, com humor e ironia mordaz funcionando em ritmo de pingue-pongue, e rasgadas gargalhadas de permeio. Dos dois jovens políticos de então, ambos desde sempre militando em trincheiras diferentes, um, infelizmente, já não está entre nós, e o outro, há mais de uma década, preside ao Governo dos Açores.
Pois é digníssimo Jorge, ainda não me refiz da desagradável surpresa que nos proporcionaste. Para a atenuar, e compensar a repentina ausência, tenho lido e relido o prefácio com que me brindaste para prelúdio de um livro que por razões várias continua em maqueta, sem ir ao prelo. Ajuda, mas recorda-me que também tenho entre mãos um dos teus órfãos: um prefácio que já não tem o amparo do seu autor. Nada que não se resolva, mas que contigo por perto seria mais fácil.
Descansa em paz amigo.

PS – Faleceu hoje (02Agosto2010) Mário Bettencourt Resendes: também açoriano, também um insigne jornalista, este sim, só e apenas um autonomista.
Terminada uma longa e brava luta, que agora também descanse em paz.

A.O. 03/08/10; “Cá à minha moda" (revisto e acrescentado)