quarta-feira, outubro 13, 2004

A TENDA DO MESTRE VIRGÍNIO

Julgo não exagerar se considerar “a tenda do Mestre Virgínio” – algures entre os nºs 132 e 136 da 1ª Rua de Santa Clara – como mais um dos locais de culto em Santa Clara, que, infelizmente, já deixaram de existir!
Desde sempre – e até recentemente quando já próximo do fim da sua vida tive oportunidade de com ele privar e conversar longamente – tinha interiorizado a ideia que o Mestre Virgínio era um homem distante e “carrancudo”. Desde criança via-o passar, sempre sozinho, com aquele passo seguro de “falso lento”, e com os olhos ora no chão ora no infinito, como quem se está consumindo em nada de acordo com a vida simples e pacata que parecia ter.
Já mais “crescidinho”, quase adulto, alguém – sinceramente já não me recordo quem! – disse-me que Mestre Virgínio era comunista e que a sua muito discreta tenda de barbeiro, teria sido um importante local da logística do PCP nos mais difíceis tempos de oposição clandestina. Se isso é verdade, nem o próprio mo confirmou quando tive oportunidade – começamos a ficar mais à vontade um com o outro dois ou três anos após termos iniciado longas e francas conversas – de lhe questionar pessoalmente sobre o assunto. Na altura, o melhor que lhe consegui arrancar, foi um sorriso quase inexpressivo, acompanhado de um mal dissimulado brilho nos olhos!
Logo nos primeiros tempos após o 25 de Abril – quase como que confirmando que a partir daquela altura aquele local poderia ser dispensável – a tenda do Mestre Virgínio mudou de dono.
Foi lá, com amigos já na altura possuidores de consistente formação política – iniciada, primeiro na JOC de Santa Clara, e mais tarde aprofundada nos contactos e saberes que a SEXTANTE proporcionou -, que mantive longas e profundas discussões, enquanto se mudavam algumas pedras num tabuleiro de xadrez , em dupla competição, onde era muito mais renhida, e acalorada, a troca de ideias propriamente dita do que a partida de xadrez em si.
Depois de ter sido também um embrião da dinamização cultural, a tenda do Mestre Virgínio foi ainda, durante algum tempo, o espaço que José Manuel Medeiros Cabral –“ Zé Manel Cabral” para os amigos, e Medeiros Cabral no mundo das artes – utilizou como atelier.
Lá assisti - mais uma vez entre interessantes e intermináveis conversas – ao demorado parto da sua obra prima; o tríptico “A HISTÓRIA”, que denunciando com a emoção daquela época a sempre presente luta entre opressores e oprimidos, na terceira tela do conjunto; “O CAPITALISMO”, perpetuou o registo da Santa Clara Industrial do início do século XX.
Estou convicto que atenda mo Mestre Virgínio foi o último bastião – talvez o único que, resistindo à ditadura tenha chegado até ao último quartel do século XX –, dos vários que chegaram a existir em Santa Clara, dando corpo ao anarco-sindicalismo que antecedeu a Republica, e mais tarde, aos movimentos operários dos primeiros anos do século XX.

Do próprio. Texto (revisitado) publicado na imprensa local no fim da década de 90.