quarta-feira, outubro 20, 2004

Visita guiada

Convido-vos a uma visita guiada a Santa Clara.
É esta a forma que encontrei – depois de começar este texto, um sem número de vezes nunca me satisfazendo com a tentativa anterior – para corresponder ao convite do ilustre director daquele que é o decano dos jornais em língua portuguesa, participando nesta edição comemorativa dos quinhentos anos de elevação a vila, sede de concelho, do burgo onde nasci. Disfarçando alguma falta de talento para a abordagem que se irá seguir convém prevenir para o facto de, mais do que como cidadão de Ponta Delgada, aqui estou por ter sido nado e criado em Santa Clara, pois não fora esta casualidade possivelmente não tinha despertado da tese que atribuiu àquele modesto bairro – de certa forma desprezado (e não sendo por via do futebol, praticamente ignorado) –, uma invulgar importância na formação e baptismo, da hoje maior e mais importante cidade dos Açores.
Feitos que estão estes considerandos, proponho então que me acompanhem na visita ao bairro onde, eu e – segundo alguns nos quais também me incluo – a cidade de Ponta Delgada, nascemos.
Sendo possível, sugiro que sejam portadores do livro IV das “Saudades da Terra”, de preferência, a sua última edição - Instituto Cultural de Ponta Delgada 1998 -, ainda não esgotada e portanto disponível nas boas livrarias desta cidade.

Edição do Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1998

Escolhendo um dia claro e numa hora de maré vazia, iniciemos o nosso périplo no adro da actual igreja de Santa Clara. Avançando pela direita do templo, depois de atravessar uma passagem estreita, somos chegados a um recente e praticamente improvisado recanto com dois bancos e uma árvore, que, com muitta dificuldade, pois o ar marítimo, ali, dificilmente o permitirá, algum dia poderá vir a proporcionar sombra.

Embora a árvore primitiva já tivesse sido substituída, hoje, é este o "amanho" do local.

Sentemo-nos num dos bancos. Nas nossas costas está um pequeno núcleo de casas, algo desorganizado quando analisados em função da lógica da situação actual, mas que ainda num passado recente permitia que algumas delas, orientadas como estão para nascente, estivessem simultaneamente de frente para o mar. Mesmo por baixo de nós, ainda há alguns meses atrás, eram visíveis ruínas, que muito bem poderiam ser as de uma das primeiras construções de pedra, barro e cal de Ponta Delgada. Levantemo-nos, e recomecemos o passeio. Continuando em frente, e depois de atravessar a via que agora aqui existe, entre os carros e autocarros que usam o muito entulho por aqui depositado como parque de estacionamento, chegamos então à “beira da rocha”, já próximo da Ponta Delgada.

Assim!

Avancemos agora para poente cerca de cento e cinquenta metros; aí está a “Ponta da Sardinha”, nome porque é vulgarmente conhecida em Santa Clara uma fina e baixa língua de basalto, agora também ela praticamente toda coberta de entulho, apenas com a sua extremidade ainda à mostra, entrando pelo mar adentro, que mesmo depois de submersa assim continua prolongando-se por cerca de mais cento e cinquenta metros, terminando num baixio a dois ou três metros do nível do mar.

Anos60/70.Uma família de Santa Clara - a família Moniz - "à beira da rocha", em local onde mais ou menos hoje está o parque de estacionamento do Restaurante Farol. Ao fundo vê-se a extremidade da "Ponta da Sardinha", Ponta de Santa Clara ou ainda Ponta Delgada, quando esta, ainda pouco entulhada, visivelmente entrava pelo "mar adentro".

Local muito próximo do anterior, hoje em dia!

Para aqueles que se fizeram acompanhar do livro, é chegada a altura de, pela primeira vez o abrir, e, na página cento e setenta e dois, ler: “Esta cidade de Ponta Delgada é assim chamada por estar situada junto de uma ponta de pedra de biscouto, delgada e não grossa como as outras da ilha, quase rasa com o mar, que depois, por se edificar mais perto dela uma ermida de Santa Clara, se chamou ponta de Santa Clara; entre a qual e a da Galé se faz uma grande enseada, já dita, de compridão de três léguas.”
Por favor digam lá! Emoldurada por tetrápodes, coberta de lixo e apesar do muito entulho que tem sido aqui depositado, não é possível reconhecer a ponta que Frutuoso descreveu?
Independentemente da vossa resposta, continuemos a caminhar para poente. Logo a seguir ao farol existe um pequeno promontório que protegeu e dissimulou a casamata e o paiol da “peça de Santa Clara”, que aqui instalada pelo exército dos EUA, no fim da Primeira Guerra Mundial defendeu a costa e o acesso ao porto da cidade. Subamos ao alto desta pequena elevação.

A "peça" instalada em Santa Clara no final da I Guerra Mundial, quando já se preparava para ser desmontada e retirada para outro local. Vê-se também, em segundo plano, o promontório que abrigava o paiol e a casamata, e ao fundo, as antigas chaminés da Fábrica do Açucar de Santa Clara ainda intactas.

De frente para o mar e ligeiramente virados a poente, temos sob o nosso olhar a “ponta da eira".


De Poente para Nascente; a Ponta da Eira em primeiro plano, com a Ponta da Sardinha (versão popular local), ou Ponta Delgada em segundo plano - por baixo dos tetrápodes - , e a Ponta da Galera - só com a foto ampliada se vê - sobre a linha de orizonte.

De Nascente para Poente; a Ponta da Eira, com a Ponta Baltazar Roiz em fundo. (Recorte. Pág. 459 do livro "PONTA DELGADA a História e o Armorial. Manuel Ferreira 1992)

É assim que é conhecida em Santa Clara, por associação aos moinhos de vento que outrora por aqui existiram, esta última saliência da costa antes que esta, iniciando definitivamente a sua orientação para noroeste, se torne alta e alcantilada praticamente até aos Mosteiros.

A Ponta Baltazar Roiz ao fundo, com o muro da antiga fábrica de conservas - que agora ocupa a área onde outrora estiveram os moinhos de vento - em primeiro plano.

É então altura de abrir mais uma vez o livro e fazer uma nova leitura, agora na página cento e setenta e oito. Lá está: “Da ponta de Santa Clara começa a varrer a costa com rocha baixa para noroeste, até uma pequena ponta ao mar, que se chama a ponta de Baltazar Roiz (porque morou ali um homem principal, deste nome) em que se acaba o comprido da cidade. Vai logo além alevantando a rocha mui alta, e fazendo uma baía, na qual está o lugar da Relva, meia légua da cidade, ao longo da costa (…)”.

Ainda sem fechar o livro, neste mesmo lugar, viremo-nos agora um pouco para nascente fazendo um esforço para imaginar como seria a costa sem o enorme maciço artificial que é o porto, desde a ponta da Galera até ao local onde nos encontramos.

A enorme baía balizada pelas duas pontas; a da Galera e a Delgada (de Santa Clara ou da Sardinha segundo versão local), agora com o Porto de Ponta Delgada dissimulhando-lhe o profundo recorte original.

Feito o exercício de imaginação – facilitado, já que o recorte da costa que o porto abriga é bem visível deste ponto – regressemos ao livro, agora a páginas cento e quarenta e um, para aí ler outra descrição do cronista: “ ( a ilha …) é de comprido dezoito léguas e de largura duas e meia, a partes, e em algumas, uma, que é no meio dela, onde a fazem mais estreita duas baías grandes que tem, uma da parte do sul, de uma ponta que se chama da Galé até à ponta de Santa Clara, da cidade de Ponta Delgada, e outra, da parte norte (…)”

Em minha opinião as descrições que Frutuoso fez, coincidem com os locais que temos andado a visitar e ver, sendo óbvio que estamos na extremidade poente da enorme baía iniciada, lá ao fundo, na Ponta da Galera.
Antes de abandonar este local, sugiro que, virando as costas para o mar, olhemos em direcção ao interior da ilha. Lá está, por cima do casario, como que atraindo o nosso olhar, a enorme elevação artificial que suporta o acrescento em tempos feito à pista do aeroporto.

Sem palavras
O cenário daqui obtido nem sempre foi este. Ainda recordo a frondosa mata que ocupava quase toda aquela extensão, terminando nas “pedreiras da doca”, por cima da qual existiam terrenos de cultivo confrontando a Norte com o Ramalho e a Este com a Relva.
Amostra, do pouco que sobrou da frondosa "Mata da Doca".
Pormenor da foto aérea já "postada", desta feita com detalhes do interior de Santa Clara antes referido, realçando-se a "mata da doca" quando o campo de futebol ainda existia estando as barrocas da pedreira ainda bem visíveis. Vêem-se também os terrenos de cultivo do Ramalho (em cima), e da Relva (à esquerda), e à direita, a Avenida do Principe do Mónaco com a respectiva rotunda ao cimo.

Mas muito antes da exploração as pedereiras e da intervenção paisagística do Eng. Dinis da Motta, quando o lugar da ponta delgada era ainda um “solitário ermo”, tal como escreveu Frutuoso, toda esta zona era um cerrado matagal.
De novo recorrendo ao livro, agora logo na página dez, podemos ler: “E de Vila Franca vinham correndo a costa em barcos, e saindo na Ponta Delgada, cinco léguas de Vila Franca, na Ponta de Santa Clara, iam a montear, e, entrando por terra adentro um tiro de besta, e tiro e meio, sem poder mais entrar nela, pelo mato ser muito maninho e espesso, estavam dois dias e três, em que carregavam de porcos monteses, com que se tornavam para suas casas bem providos.”
E depois, já na página duzentos e vinte e sete: “ Os porcos do monte eram tantos e tão bravos que davam grande trabalho aos monteiros. Havia infinidade deles além da cidade da Ponta Delgada, para aquela banda de Santa Clara, e até à casa de Francisco Ramalho, onde os iam montear os moradores de Vila Franca, levando mantimentos em seus bateis para alguns dias, nos quais, fazendo salga neles, se tornavam com muitos para a mesma Vila"."
Feito que está, o possível “retrato” desta área, regressemos ao ponto de partida, para nos determos um pouco na extrema oeste do improvisado parque de estacionamento. Avançando agora para nascente, depois de ultrapassadas as pedras que delimitam esta improvisada zona, já mesmo sobre o limite do aterro, muito próximo do já soterrado “Cunhal da Maré”, uma enorme pedra em formato de ovo que a natureza moldou sobre um a base também de basalto, uma referência nesta zona da costa.

O "Cunhal da Maré", hoje completamente soterrado, é a enorme pedra que está por detrás do braço direito da criança representada em primeiro plano.

Algures, aqui por baixo, está agora o "Cunhal da Maré"


Desolador aspecto do que resta do "Calhau da Areia", com a "Entrada" e respectiva ponta em fundo, vendo-se ainda os "Tanques do Óleo" sobre aquela que Frutuoso chamou de "Ponta dos Algares"

Daqui até à Ponta da Entrada – lá ao fundo -, separada pelo “esguicho” (um poceirão outrora fundo, excelente para mergulhar, nadar e pescar) da Ponta do Salteio (nome como em Santa Clara é conhecida a ponta sobre a qual estão os “tanques do óleo”. A Ponta dos Algares como Frutuoso escreveu), estende-se o “Calhau da Areia”, nome popular desta pequena enseada onde hoje só existe “calhau rolado”.

Também este local já foi bem diferente. Mais recortado, muito mais limpo, com muito mais areia. Era uma aprazível zona de banhos para os habitantes de Santa Clara. E quanto mais recuarmos no tempo, maior e mais profunda foi esta baía em que o mar chegava até à primeira linha de construções que hoje daqui vemos.
Chegou a hora de, pela última vez abrir o livro que vos sugeri, e, na página cento e setenta e oito, ler como Frutuoso descreveu o “Calhau da Areia”. Tenhamos porém em conta que o fez de uma posição exactamente oposta aquela em que nos encontramos; de nascente para poente: “Além, pouco espaço da Fortaleza para loeste, está uma ponta que se chama dos Algares (…) Defronte da qual está um baixo, entre o qual e terra passam barcos, e logo está uma pequena baía de areia, defronte das casas do em tudo grandioso Francisco Arruda da Costa, merecedor de grandes coisas, por toda a sua indústria, e com grande custo seu cercada de muros e cubelos, com sua porta para o mar, tudo muito defensável, e pegado com a porta, chamada de Santa Clara, por ali estar a igreja paroquial desta Santa, onde se acaba a principal costa da cidade, que ainda chega à outra ponta de Baltazar Roiz. Entre a qual e a da Galé (como já se disse), fica a grande baía de três léguas de comprido ( … )”

A Ponta dos Algares - do Salteio segundo a versão popular ou ainda das Aringas -vista do antigo Estradinho, cumprindo o sentido da descrição feita por Gaspar Frutuoso.

Costa de Santa Clara, com o "Calhau da Areia" ao centro entre a Ponta Delgada e a Ponta das Aringas (ou dos Algares), cuja estrema oeste é popularmente conhecida por Ponta da Entrada. Eram aliás, a Ponta da Entrada, a nascente, e o "Cunhal da Maré", a poente, o que definia em concreto a enseada em cujo extremidade mais abrigada se situava o "Calhau da Areia".

Sendo tantas, e tão exactas as referências a todos estes locais, permitam-me admitir ter sido no “Calhau da Areia”, quando era maior e tão apropriado para desembarcar que até foi necessário defendê-lo com uma muralha, que os caçadores de Vila Franca deixavam os seus barcos quando para aqui vinham montear. E assim tendo sido, possível se torna aceitar, que alguns deles tivessem, naturalmente, por aqui se fixado dando origem ao início do povoamento do lugar da ponta delgada.
Vou já terminar, mas não sem antes escrever que enquanto o “progresso” não a arrasar completamente, sem grande esforço – e com muito prazer -, podia também conduzir-vos até ao que julgo ser o que resta da muralha com cubelos que Francisco Arruda da Costa construiu, e que poderá ser uma forma de se chegar à localização da ermida original em evocação a Santa Clara, que estando na origem do renomear da ponta, lhe retirou o nome inicial para com ele baptizar; primeiro o lugar, depois a aldeia, e mais tarde a vila que deu lugar à cidade de Ponta Delgada.
Do próprio. Texto (revisitado) publicado no suplemento do Açoriano Oriental de 19 de Julho de 1999, comemorativo dos 500 anos do Concelho de Ponta Delgada