Serafim… – gritou exausta
Maria de Fátima!
O pujante brado,
misto de gemido de dor e clamor de alívio, foi o ponto final de um longo e
difícil parto: o primeiro a acontecer no lugar da ponta delgada.
Serafim…Serafim…
Serafim… voltava a ouvir-se, agora de forma repetida e arrastada. Era como se
as paredes do algar que servia refúgio ao jovem casal, morada adoptada desde
que chegaram aquelas paragens, propagando a exclamação da aliviada mãe, também
dessem as boas vindas ao novo habitante do lugar.
Dissipado o eco
fez-se um momento de silêncio, permitindo voltar a ouvir o habitual som do mar,
em especial quando percorria, umas vezes calma outras furiosamente, aquela longa
restinga até bater nos contrafortes da rocha onde quatro ou cinco metros
acima a natureza vulcânica da ilha esculpira a gruta que abrigara Serafim e
Maria de Fátima, acolhendo a partir de agora também o filho do casal.
Aproveitando a quietude da ocasião, não mais que um
ápice embora não o parecendo, o jovem pai, também extenuado, fechou os olhos e
iniciou uma oração, logo interrompida pelo primeiro choro do recém-nascido. Suspendendo
a reza, ao reabrir os olhos Serafim pôde pela primeira vez contemplar o filho de
corpo inteiro. Ali estava ele, aconchegado ao peito da mãe, ainda com os olhos
fechados mas com a boca muito aberta, entretanto já liberto da maioria dos
vestígios de tão rudimentar quão eremítico parto, atraindo o olhar embevecido de
ambos os progenitores. Aquele fora o motivo da sua tão radical mudança de vida,
autêntica aventura, fruto de uma decisão tomada sem grande ponderação, porém nada
que, quatro meses passados, levasse ao arrependimento o casal fugitivo. Aquela
era a razão de terem abandonado tudo e todos, deixado o razoável conforto da
família, amigos e conhecidos: a causa da sua saída do já então promissor povoado, onde cresceram e conceberam aquele filho. Ali estava a razão de se terem refugiado
naquele ermo; da visível transformação de um lugar que pelo seu esforço e determinação em menos de meio ano se tornara habitável, até aqui só para ambos, agora também
para o seu filho, no futuro para os demais vindouros.
Com o primeiro natal
do “solitário ermo” coincidindo com o equinócio da Primavera, aquele dia ficaria
marcado nas suas vidas, literalmente com sangue, suor e lágrimas. Entretanto a
noite chegava, também ela singular: a primeira desde que Serafim e Maria de
Fátima se haviam fixado no lugar da ponta delgada em que já não contavam apenas
um com o outro.
As noites daquele Inverno, além de frias e quase
sempre adereçadas com o assustador barulho das vagas de sudoeste, tinham sido
longas. Compridas porque se seguiam a um dia curto para o muito a fazer, infindáveis
pelo desconforto de dormir no rude estrado que lhes servia de leito, mal
abrigados, ali paredes-meias com a entrada do desafogado algar onde se
refugiaram. Fora a extensão destas noites de inverno o que lhes permitia pensar muito naquilo que havia para fazer nos dias vindouros, nisso incluindo o estabelecer
dos nomes a dar ao filho ou filha que estava para chegar. A escolha dos nomes, pelo
menos dos dois primeiros dos vários filhos que desejavam ter, tinha sido o tema
mais presente no pouco tempo livre até ali existente, por regra o início da
noite. A bem da verdade, estes há muito estavam escolhidos, com as conversas tidas
só consolidando as opções já feitas. De facto os jovens amantes, ainda no
povoado de origem, olhando o mar ou o ilhéu que do oceano se erguia à sua frente,
um cenário que os inspirou e incentivou para a fuga que mais tarde ocorreria, logo
que confirmada a gravidez de Maria de Fátima iniciaram a escolha dos nomes a
dar aos seus descendentes. Fátima e Serafim facilmente ganharam consenso: Serafim
por já ser o nome do pai, tal como do avô e de todos os primogénitos daquele
ramo familiar, o clã galego dos Serafíns
que agora nos Açores davam continuidade à longa experiência marítimo/piscatória
acumulada ao abrigo da costa Oeste do Cabo Finisterra; Fátima por ser um dos
nomes da mãe, Maria de Fátima, reabilitando o singelo nome da bisavó, Fatimah, a “moura encantada” que tantos corações tinha
despedaçado logo que se tornara mulher, já nos Açores, onde aportara inserida
na família que a adoptara em Portugal, ainda menina, recém chegada de Ceuta.